Nome negado: população T resiste em meio à insegurança jurídica e falta de acesso à retificação

Cenário preocupa, pois o nome além de  porta de acesso a direitos básicos,  está ligado ao enfrentamento de violências

- Não, senhora, quem tem que vir é ele - disse a funcionária da Secretaria de Segurança Pública (SSP) da Bahia a Violeta Conceição, de 22 anos, quando, em agosto, precisou retirar a segunda via do Registro Geral (RG). A estudante respondeu apenas com uma risada nervosa. Sem uma certidão da Justiça Militar, não consegue retificar seus documentos - que ainda remetem a alguém que existe apenas formalmente - e luta pelo respeito a seu nome social (nomenclatura com a qual alguém se apresenta, sem necessariamente estar presente em documentos oficiais). 

“A atendente foi uma fofa, mas tem também as pessoas babacas”. Essas, em vez do pedido de desculpas, optam pela transfobia, usando o nome morto (registral) para invalidar a identidade de um ser humano. Foi o que aconteceu com a baiana na fila da vacina. 

A Portaria nº 1.820/2009, do Ministério da Saúde, assegura que, nos serviços de saúde, as pessoas possam escolher o chamamento que as deixem confortáveis. Enquanto aguardava para ser imunizada, porém, a estudante de Salvador foi chamada pelo nome morto pelos profissionais que deveriam conhecer e fazer valer a regra. 

“Parece que as pessoas fazem de propósito ao te chamar ‘daquele’ nome. Estão vendo você ali, belíssima, lindíssima, mas te tratam no masculino”, desabafa. Ela diz já estar acostumada com violências desse tipo, repetidas em mercados, em farmácias e no transporte público.  “A gente tem que levantar a bandeira de que isso é chato e que não deve acontecer”.

“Parece que fazem de propósito. Estão vendo você ali, belíssima, lindíssima, mas te tratam no masculino”

Violeta Conceição

Após quase uma década de pressão de movimentos sociais, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275, em 2018, reconheceu o direito de alterar o nome e o gênero registrais a pessoas trans, sem necessidade de cirurgia de redesignação sexual, tratamento hormonal, processo judicial e apresentação de laudo psicológico. Mesmo considerada um avanço, passados três anos da decisão, barreiras burocráticas e socioeconômicas impedem que a maior parte da comunidade T, assim como Violeta, acesse o direito. 

Ainda que faltem dados censitários sobre a população T no Brasil, um levantamento da cidade de São Paulo, realizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), indica que, em 2021, 74% das travestis não alteraram seu nome, nem gênero em documentos. A mesma taxa para homens e mulheres trans é de, respectivamente, 58% e 61%.  

Sem acesso à retificação, a maioria das travestis (80%), homens (72%) e mulheres (83%) trans utilizam o nome social para preencher cadastros. Ao fazerem isso, ficam em uma zona de insegurança jurídica, pois não há uma regra nacional sobre o uso do vocativo quando não alterado formalmente. 

O cenário atual preocupa, pois o nome é a porta de entrada da pessoa ao serviço público. O vocativo está ligado ao acesso a direitos básicos, como educação,  moradia, saúde e trabalho. Atrás de cada um desses conjuntos de letras está alguém que, como qualquer pessoa, necessita viver em plenitude sua identidade sem passar por constrangimentos ou violações. 

Nos últimos dois anos, com a pandemia da Covid-19, a dificuldade de acesso aos serviços ficou ainda mais evidente. Sete em cada dez pessoas trans não tiveram acesso à ajuda estatal, como, por exemplo, o Auxílio Emergencial, conforme o “Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais brasileiras”, de 2020, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). A principal razão para isso: a falta de campo para o nome social nos formulários de solicitação, que inviabiliza as solicitações para quem ainda não tem a alteração documental formalizada.

7 em cada 10

pessoas trans não tiveram acesso ao Auxílio Emergencial por falta de campo para o  nome social nos formulários de solicitação

Fonte: Antra/2020

A retificação em cartório, conforme regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) após a decisão do STF, que converte o nome social em civil, torna-se, assim, uma obrigação. Para  Lirous K’yo Fonseca Ávila, presidenta da Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (Adeh), hoje, a luta é para manter esse direito conquistado e acessível, porque ADI não é uma lei e, portanto, pode mudar a qualquer momento, a partir de uma decisão do Congresso ou do Judiciário. 

Essa preocupação tem muito a ver com a força política de uma ADI. “A precariedade da questão da Ação Direta de Inconstitucionalidade é que, se o legislativo resolver legislar em relação contrária à decisão do STF, a lei vale mais que a decisão do STF. Então essa é a grande precariedade”, explica a advogada Crishna Correa.

Conforme levantamento do Projeto Aliadas da Aliança Nacional LGBTI+, havia, em junho, 28 projetos favoráveis à comunidade LGBT na Câmara dos Deputados, dos quais 16 estavam sem previsão de votação em plenário - 16 também era o número de propostas que revogavam garantias da comunidade.

Enquanto as propostas em favor dessas pessoas tramitam a passos de formiga, os contrários avançam a passos de leão. Quando conversou comigo para reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, a deputada federal Vivi Reis (PSOL) contou que a bancada do partido tem medo de pautar a causa LGBT, pois teme retrocessos. “Um projeto de lei pode ser modificado de forma perversa”, alerta. 

“Um projeto de lei pode ser modificado de forma perversa”

Vivi Reis

Mas não é só o Congresso Nacional que preocupa. Elisa Costa Cruz, defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, pontua que, mesmo não sendo um processo simples, o STF também pode mudar seu raciocínio relativo ao tema. “Há medo de que, com uma mudança conservadora do órgão, haja o retrocesso dessas conquistas que foram feitas por meio de decisões judiciais”.

A preocupação tem fundamento. Afinal, desde que assumiu o mandato de presidente da República, Jair Bolsonaro tem frequentemente atacado o STF e destacado a necessidade de indicar nomes “terrivelmente evangélicos”, como o do advogado e pastor André Mendonça, para o órgão. O evangelismo, nesse caso, diz respeito a preceitos religiosos conservadores, que prezam por uma equivalência entre sexo e gênero. Isso, no entanto, não quer dizer que todos os fiéis ou organizações da religião estejam associadas a atos transfóbicos.  

Para se ter uma ideia do que significa evangélico para o  presidente, a também pastora e ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves já deixou evidente sua concepção binária sobre gênero quando assumiu o cargo em 2019. “É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”, disse naquele ano. 

Burocracia e mais burocracia

Em um cenário que empurra as pessoas trans a agilizarem seus processos de retificação, boa parte da comunidade continua sem conseguir acessar o direito. Isso porque, mesmo a ADI tendo facilitado a alteração, que antes poderia demorar anos, ainda é necessário apresentar cerca de 17 documentos, conforme listado no Provimento nº 73 do CNJ, como Registro Geral (RG) e comprovante de residência. Quando não se consegue judicialmente a gratuidade, pode haver um gasto de mais de mil reais para emitir as certidões exigidas. 

“Temos uma burocracia excludente, que não facilita que travestis e transexuais periféricas acessem a retificação do nome”, aponta Lirous. Conforme o “Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais brasileiras”, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 92% da população trans trabalha como profissional do sexo. “Então você precisa, por exemplo, comprovar residência fixa por um tempo. Esses trabalhadores não costumam ficar em uma cidade só. Pelo contrário, costuma ser uma população bastante flutuante”, exemplifica.

Marília Golfieri Angella é especialista em Direito da Mulher e está  acostumada a  auxiliar pessoas trans. Atuando na capital paulista, a advogada acompanhou o acolhimento jurídico de uma jovem T que fugiu do Nordeste em busca de mais segurança em São Paulo. Na pressa de deixar o local onde sofria violências, não teve tempo de pegar seus documentos.

“Não tem como eu chegar para essa mulher e dizer: 'Você tem um direito, pode ir retificar em qualquer cartório, com os documentos exigidos’. O passo dela era muito para trás, primeiro, tinha de se estruturar economicamente, ter autonomia, sair de uma situação de vulnerabilidade”, explica Marília. 

Adquirir autonomia exige, sobretudo, compreender como o processo de retificação funciona. “A maior violência que ainda sofremos é a falta de informação qualificada”, diz Joyce Gomes, uma das fundadoras da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (Assotram).

Em Manaus, Joyce conta que nunca deixa aqueles que pedem ajuda à Assotram fazerem o processo de retificação sozinhos. “Alguém precisa acompanhar, para que essa pessoa não tenha o direito básico negado.” Isso aponta outra vulnerabilidade da ADI, que deixou os cartórios com bastante autonomia na condução dessas alterações e cada um opera de uma maneira. 

Não é de estranhar que a transfobia também esteja presente nesses estabelecimentos, deixando a comunidade T refém da boa vontade dos tabeliães. Os funcionários podem simplesmente negar a documentação sem prestar informações para que a pessoa complete o itinerário necessário e retome o processo. As constantes negativas podem levar à desistência de acessar um direito básico.   

Fundadora da Assotram, para retificar seus documentos, em 2012, Joyce Gomes teve de recorrer à justiça. Orientada por uma advogada, registrou nome simples, mesmo sonhando com o vocativo composto "Joyce Loranne". Foto: Assotram/Instagram/Reprodução

Fundadora da Assotram, para retificar seus documentos, em 2012, Joyce Gomes teve de recorrer à justiça. Orientada por uma advogada, registrou nome simples, mesmo sonhando com o vocativo composto "Joyce Loranne". Foto: Assotram/Instagram/Reprodução

Fundadora da Assotram, para retificar seus documentos, em 2012, Joyce Gomes teve de recorrer à justiça. Orientada por uma advogada, registrou nome simples, mesmo sonhando com o vocativo composto "Joyce Loranne". Foto: Assotram/Instagram/Reprodução

Fundadora da Assotram, para retificar seus documentos, em 2012, Joyce Gomes teve de recorrer à justiça. Orientada por uma advogada, registrou nome simples, mesmo sonhando com o vocativo composto "Joyce Loranne". Foto: Assotram/Instagram/Reprodução

Fundadora da Assotram, para retificar seus documentos, em 2012, Joyce Gomes teve de recorrer à justiça. Orientada por uma advogada, registrou nome simples, mesmo sonhando com o vocativo composto "Joyce Loranne". Foto: Assotram/Instagram/Reprodução

Fundadora da Assotram, para retificar seus documentos, em 2012, Joyce Gomes teve de recorrer à justiça. Orientada por uma advogada, registrou nome simples, mesmo sonhando com o vocativo composto "Joyce Loranne". Foto: Assotram/Instagram/Reprodução

“A maior violência que ainda sofremos é a falta de informação qualificada”

Joyce Gomes

Quanto ao nome social, nenhuma normativa

Usar o nome social sem concluir a retificação acaba por ser a única opção para a maior parte da população T. Isso porque além das dificuldades de acessar o processo de alteração no cartório, o reconhecimento da identidade de gênero não é, necessariamente, rápido e ágil. “As transições não ocorrem de um dia para o outro. Às vezes, levam tempo”, aponta Crishna.

Mesmo tendo grande relevância, não há uma regra nacional sobre o uso do nome social. Na verdade, há uma pluralidade de legislações em algumas unidades federativas, municípios e universidades, por exemplo. O mais próximo de uma regulamentação geral é o Decreto n° 8.727/2016, que define que “os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o nome social da pessoa travesti ou transexual.”

Essa realidade é sinônimo de precarização da vida, uma vez que o expediente não está no Direito Civil e fica dependente de normas meramente administrativas. “A precariedade traz também a marginalização e a insegurança. Eu não sei onde eu posso usar, em cada lugar uso de um jeito, então, o sujeito fica multifacetado”, avalia Crishna.

Em um país de tradição penal, como o Brasil, a falta de uma resolução específica nacional dificulta pensar em uma punição a quem desrespeite o direito à personalidade de uma pessoa trans. Para a advogada, existem dois caminhos possíveis: “Dentro de uma universidade pública, você pode mover um processo administrativo por não seguir uma regra administrativa. No âmbito civil, você denunciar por injúria, dependendo do modo como isso é dito, pode configurar danos morais”.

Crishna fala que é raro que esses processos se concretizem. “Conheço muita gente que já passou por isso, mas nunca foi indenizada. Todas essas pessoas ficaram bastante fragilizadas com as situações”, conta. Por outro lado, a jurista questiona a efetiva possibilidade de que a maior parte da comunidade T possa recorrer ao Judiciário. "Para começar, você tem que ter condições de movimentar a justiça. Tem uma questão, entre a população trans, que é a de não ter acesso à justiça.”

Por trás de cada nome, uma pessoa

A burocratização da vida e a impunidade à transfobia preocupam, pois, atrás de cada nome, existe uma pessoa que circula no mundo e se apresenta com o vocativo que melhor a representa. “O não reconhecimento enquanto sujeito, o não acesso a direitos e a situação de vulnerabilidade frente aos outros adoece o ser humano”, adverte a psicóloga Ana Carolina Mauricio. 

Para as pessoas trans, o nome carrega um peso ainda mais simbólico. Esse vocativo, em quase todo o Ocidente, desvela o poder parental, porque são eles que geralmente fazem a escolha, antes que a criança nasça ou possa consentir. 

Ao mesmo tempo que será porta de entrada para a identidade, o nome representa a quebra com um sistema cultural de poder. “A escolha dele, por exemplo, é um momento muito importante em vários aspectos. Principalmente, porque marca um movimento mais formal, de dizer e de declarar”, resume Crishna.

Caio Santana: “Se meu Orixá me aceita, o resto para mim não interessa”

Declarar-se ao mundo com seu nome e gênero escolhidos por ele figurou por muito tempo entre os maiores medos de Caio Santana, de 40 anos. O estudante de Serviço Social se habituou a avaliar constantemente em que situações estaria ou não seguro apresentando-se como ele mesmo. “Acho que já passei por todos os tipos de violência”, justifica.

Desde pequeno, Caio sempre se identificou mais com os meninos, gostava de jogar bola, usava vestes consideradas masculinas e andava com os longos cabelos presos. A mãe nunca se importou, mas o mesmo não pode ser dito de outros familiares e algumas pessoas que encontrava em ambientes coletivos, como na escola. Os comportamentos eram repreendidos por olhares curiosos; comentários maldosos, como “Ave Maria, parece um menino”; e apelidos ofensivos, entre eles, “menina macho” - o mais frequente.

Acostumou-se a se calar ou a reagir de forma violenta aos insultos. "Não era muito de conversa. Se eu começasse a discutir, acabava chorando. Antes do choro cair, eu metia a mão”, lembra. A mãe frequentemente era chamada à escola, onde boa parte das agressões acontecia. 

A passagem da infância à adolescência foi marcada pelo afloramento ainda maior da identidade, com isso, as agressões e apelidos se tornaram mais frequentes na escola. Quando tinha 15 anos, a situação ficou insustentável, teve deixar de vez os estudos. 

Além da conivência de professores e gestores com os comportamentos transfóbicos de outros estudantes, uma amiga muito próxima de Caio foi proibida, pelos pais, de vê-lo e de conversar com ele. “Achavam que ela ia ‘virar’ lésbica”. Ele decidiu largar a escola, pois seria muito doloroso manter-se por ali sem poder falar com quem antes era sua confidente. 

As violências enfrentadas desde pequeno levaram Caio a temer dizer seu nome verdadeiro ou corrigir aqueles que erravam seus pronomes. Medo que aumentou com a passagem dos anos. “Tive um amigo assassinado por transfobia. Desenvolvi síndrome do pânico, que me impede de ficar em locais com muita gente. Não consigo, é muito difícil ir no mercado, na universidade”, conta Caio. O caso aconteceu há um ano e meio.

A convivência quase diária com violação de direitos humanos básicos “leva a uma vulnerabilidade, sobretudo, psicológica que compromete a saúde mental” da comunidade T, conclui o “Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais brasileiras”, de 2020, da Antra. Na mesma linha, o estudo norte-americado “Chosen Name Use Is Linked to Reduced Depressive Symptoms, Suicidal Ideation, and Suicidal Behavior Among Transgender Youth”, publicado no Journal Of Adolescent Health, de 2018, mostrou que o uso correto de pronomes e do nome escolhido por uma pessoa trans está intimamente ligado à redução de sintomas depressivos e ideações suicidas. Mas só respeitar os vocativos não é suficiente, contar com uma rede de apoio é fundamental.  

Para, aos poucos, superar o temor e lidar com a síndrome do pânico, além do apoio da família, Caio contou com o conforto vindo na forma de fé. “Meu Orixá diz que quer que eu seja respeitado do jeito que sou e por quem sou, nada diferente disso. Se Ele, divindade maior, Supremo, me aceita, o resto para mim não interessa”, conta ele que é filho de Odé e pai de santo há dez meses.   

No início deste ano, após mutirão do Ministério Público do Estado da Bahia, Caio conseguiu alterar o nome presente em seus documentos, em um cartório de Salvador. Com o reconhecimento espiritual e estatal, sente-se mais seguro. “O nome nos dá a liberdade de sermos quem somos. Agora, eu me apresento como Caio, dou a identidade e o nome combina”.

Violeta Conceição: se reduzir para caber no mercado de trabalho?

A também baiana Violeta Conceição - que preferiu não enviar fotografia -, de 22 anos, sonha com o dia em que, assim como Caio, conseguirá retificar os documentos. “Eu já sei quem eu sou. Isso é só para reafirmar”, destaca a estudante de Jornalismo. A concretização do que almeja, porém, depende de conseguir uma certidão da Justiça Militar. Com a pandemia, não teve tempo de correr atrás disso, pois, além de sobreviver, precisa se desdobrar entre o estágio, as aulas remotas e o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).

O estágio, inclusive, foi uma grande vitória para ela. Sem o nome retificado, temia colocar o social em seu currículo. “Tinha medo de não ser chamada”. Por algum tempo, cogitou utilizar o registral para concorrer a vagas.

Quem a encorajou a colocar seu verdadeiro nome foi a coordenadora do curso. “Ela chegou para mim e falou: ‘Olha, filha, você não vai se vestir do que não é para conseguir agradar o mercado de trabalho, porque não funciona dessa forma’”, lembra. Mesmo com medo, percebeu que não faria sentido se reduzir para caber dentro de uma vaga de estágio.

Para sua surpresa, após colocar o vocativo no currículo, uma empresa a chamou. Pronta para a entrevista, foi surpreendida novamente: a responsável pelo processo seletivo queria apenas "parabenizá-la" por ter incluído o nome social, mas não queria escutá-la. “Foram essas aberrações que encontrei no meio do caminho”.

Quanto mais o tempo passava, o sentimento de desespero aumentava. “Eu me via assim: vou formar e não estagiei ainda, gente, como é isso?”. Chegou até mesmo a questionar sua capacidade: “será que sou ruim?”. As contratações de outros colegas, todavia, mostraram que isso nada tinha a ver com sua competência. “Era pelo fato de eu ser uma mulher travesti. Todo mundo conseguia: pessoas negras empregadas, check, existia mulheres empregadas, check, existiam pessoas da periferia também empregadas, check. Não tinha outra explicação”.

Relatos como o dela não representam casos isolados, afinal, apenas 6% da população T acessa empregos formais, conforme dados da Antra. Filipe Gotardi, internacionalista que atualmente pesquisa empregabilidade da comunidade T na cidade de São Paulo, aponta que isso demonstra como as empresas não estão prontas para receber esse público. 

“Já existe um filtro única e exclusivamente baseado no nome da pessoa”, aponta. O internacionalista revela que, durante a pesquisa - ainda não finalizada e com dados preliminares -, deparou-se com casos em que a pessoa é aprovada no processo seletivo, mas, quando o empregador descobre que os documentos ainda não estão retificados, ela é imediatamente “descartada”. 

Mesmo cansada, Violeta não desistiu. No início de 2020, escutou o “sim” que tanto esperou. Ela não sabe ao certo, mas foi a penúltima ou a última de sua turma a conseguir um estágio. Hoje, se diz feliz em estagiar em uma empresa de assessoria de imprensa. “O pessoal é super legal e me leva sempre à frente, para mostrar que tem uma pessoa trans e negra lá. Isso é importante para mostrar que estamos ocupando esses espaços e eles sempre levantam essa bandeira.”

Lirous K’yo Fonseca Ávila: lembrar para não repetir

Antes que Caio ou Violeta pudessem pensar em retificar o nome no cartório, foram muitas as pessoas que tiveram de se submeter, em um passado não tão distante, a processos judiciais que questionavam seu gênero e as expunham à transfobia e ao machismo institucionais. Entre elas, Lirous K’yo Fonseca Ávila, que descreve o ocorrido com um único adjetivo: bizarro. 

Entre 2013 e 2016, ela precisou passar por dois desses processos, um para retificar o vocativo e outro para o gênero. “Queria que meu diploma fosse emitido com o meu nome”, justifica a assistente social formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

Questionava-se se seria possível, após formada, retornar à instituição, onde, por muitas vezes, não se sentiu bem-vinda e pedir que emitissem o documento novamente. “Era muito complicado, porque tive professores que falaram que jamais me chamariam pelo nome social e colegas que faziam comentários transfóbicos. Era difícil estar em uma sala de aula e perceber que as pessoas não te querem lá dentro”, lembra. 

A UFSC, aos poucos, trabalha para impedir que a transfobia ocupe corredores e salas de aula. Em 2021, dentro da Coordenadoria de Diversidade Sexual e Enfrentamento de Violência de Gênero (CDGEN), a assistente social Elisani de Almeida Bastos foi designada para atender as demandas da comunidade T. Ela é responsável pelo acolhimento, orientação, atendimento social e assessoramento para professores e cursos. “Sozinha, às vezes, posso não dar conta de todas as funções dessa lista, mas a gente vai fazendo o que aparece e o que é possível fazer”.

Também neste ano, um grupo de trabalho (GT) foi formado para pensar em políticas dentro da UFSC para melhor atender essa população. “O arcabouço legal da universidade está tratando dos estudantes no geral, mas, na prática, temos ações que acabam excluindo as pessoas trans, há uma dificuldade para que acessem e se mantenham aqui”, explica Elisani. 

A UFSC que Lirous viveu, há quase uma década, era bastante diferente. Por isso, com a ajuda de um amigo advogado, resolveu ir ao tribunal em 2013. Para proceder com a retificação, teve de reunir documentos, frequentar sessões de terapia, fazer um book fotográfico, apresentar testemunhas e informar quantos procedimentos cirúrgicos já havia feito. Todas as etapas marcadas por estereótipos de gênero e performances distantes de sua realidade. 

“Nas sessões de terapia, tive de fingir ser uma pessoa que não sou. Não sou uma mulher travesti feminérrima”. Lirous sempre preferiu usar calças consideradas masculinas, de cós baixo, e com bolsos, pois não tem o costume de andar com bolsas ou mochilas.  “Eu venho de uma família nerd, então a gente já tem uma cultura que é mais neutra. Aqui em casa, a gente se veste de Power Ranger, por exemplo”.

Com medo do impedimento da retificação, dançou a música como lhe foi cantada. “Foi tudo na base da performance, do fake. Se a gente quisesse acessar o direito, tínhamos de fingir ser coisas que não éramos”. Para cada sessão de terapia, arrumava-se tal qual faria para uma noite de trabalho como DJ. “Para as apresentações, tenho esse cartão de visita diferenciado. Mas as pessoas tinham que entender que eu era isso 24 horas”. 

Antes da regulamentação da decisão do STF, o laudo para retificar o nome era uma demanda frequente na rotina de Ana Carolina, que, em 2018, fez estágio na Adeh. Ao se deparar com esses casos, a mestranda em Psicologia lembra que podia optar entre dois caminhos: dizer que a pessoa estava doente, com base na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), ou que o Estado adoecia o indivíduo.

Ela preferia a segunda opção. “Mostrávamos como o não acesso aos direitos impactam a saúde mental. Defendíamos que a pessoa não estava sofrendo por conta do nome, pela condição de sexo, mas pela falta de acesso aos direitos e ao reconhecimento”.

O parecer médico ou psicológico, porém, era apenas mais uma etapa do processo que atestava o gênero da pessoa. As exigências do book fotográfico que precisou fazer também foram bastante desconfortáveis para Lirous. “Pedia foto de corpo inteiro, mostrando os seios. Não exatamente o seio nu, mas tinha que mostrar que tinha prótese para ser considerada uma mulher. Se não tivesse prótese não era mulher”. 

Ao final, foi a vez de reunir as testemunhas para que dissessem ao juiz que Lirous era, de fato, Lirous. Para testemunhar era preciso preencher alguns requisitos: ser cisgênero, heterossexual e, de preferência, casado. “Tive que achar umas quatro ou cinco pessoas ‘normais’ aos olhos da justiça, dentro desse padrão social, da família tradicional brasileira”.   

Para Lirous, não deveria ser função estatal regular a identidade dos seres humanos. O papel do Estado, defende, é outro. “Cuidar da nossa saúde, prover políticas de assistência, para que não passemos fome, tenhamos um teto”.

Após dois anos, em 2015, saiu o aval positivo do juiz. “Ao mesmo tempo que a gente fica feliz pelo Estado reconhecer que somos mulheres e temos direito de ter o nome com o qual nos reconhecemos, é meio tenso. Parece que nós precisamos de uma autorização para existirmos”.

Glossário

Cisgênero ou pessoa cis: é alguém que se identifica com o gênero de nascença.

Comunidade ou população T: é um termo que se refere a pessoas trans enquanto grupo social.

Nome civil ou registral: é a nomenclatura encontrada em documentos oficiais de todo cidadão brasileiro.

Nome social: nomenclatura com a qual alguém se apresenta e identifica, sem necessariamente estar presente em documentos oficiais.

Transexual: termo usado, no passado, para se referir a pessoas que não se identificavam com o gênero de nascença e haviam passado por processos cirúrgicos de redesignação sexual. A terminologia é considerada arcaica, mas foi ressignificada por alguns, e utilizada de forma política.

Transfobia: preconceito contra pessoas trans.

Transgênero ou pessoa trans: termo guarda-chuva que engloba aqueles que não se identificam com o gênero de nascença.

Travesti: termo usado, no passado, para se referir a uma mulher que não se identificava com o gênero de nascença, no entanto, não havia executado os procedimentos de redesignação sexual. Atualmente, é um conceito ressignificado e utilizado como ato político.