Inflamável

Pouco estudadas, as doenças inflamatórias intestinais (DII) atingem 13 catarinenses a cada 100 mil habitantes, requerem tratamentos que podem custar centenas de milhares de reais por ano e muitos pacientes ainda são negligenciados

Florianópolis, maio de 2021. Retornei à clínica médica com um nó preso na garganta. Eu já sabia o resultado da colonoscopia e da biópsia: retocolite ulcerativa com atividade endoscópica moderada. Quatro anos antes, meu pai, Daniel Woldam, havia recebido o mesmo diagnóstico após oito meses de dor abdominal, diarreia e sangramentos intensos, exames, dezenas de consultas médicas, perda de 20 quilos e internações hospitalares. Enquanto aguardava na sala de espera, foi inevitável lembrar de tudo que ele enfrentou. Senti um turbilhão de emoções que abrangiam desde gratidão, por descobrir a patologia precocemente e possuir apoio familiar e financeiro para enfrentar a situação, até a tristeza profunda, a insegurança e o desespero de ter uma doença sem cura diagnosticada aos 21 anos.

- Maria Vitória? Pode entrar.

Passei pela médica e sentei na cadeira. Entreguei os exames. Ela folheou e disse o que eu já sabia. Retocolite ulcerativa. Nos últimos dias essas palavras ficaram reverberando na minha cabeça. Ao contrário do meu pai e da maioria absoluta das pessoas com essa doença que apresentam diarreia como principal sintoma, eu tive constipação. Muita constipação. Por cerca de 10 dias consecutivos. Em um tom de desdém, a médica elevou os olhos dos papéis e me encarou:

- Retocolite não dá constipação, dá diarreia. Coma mais salada, tome uma aguinha e caminhe um pouco que isso já, já, passa. Para a retocolite mesmo, toma esse remédio aqui.

Me senti completamente descredibilizada. Mesmo com o resultado da colonoscopia e da biópsia ela estava duvidando que meus sintomas fossem aqueles. Engoli em seco. Depois de mais alguns minutos, a consulta acabou. Agradeci pelo atendimento, saí pela porta e nunca mais voltei. A partir de então faço parte de uma comunidade específica e negligenciada: a de pessoas com doenças inflamatórias intestinais (DII). Nos meses que se seguiram submergi nesse universo e tive contato com  histórias de dificuldades, dor e luta. O que descobri está descrito no texto a seguir.

Fênix

14 de dezembro de 2020. Daniel Floriano, 40 anos, teve um sangramento anal intenso e desmaiou no banheiro de casa. Schennia, sua esposa, o levou imediatamente para o Hospital São José, em Jaraguá do Sul. O oncologista e proctologista Alexandre Schlabendorff já havia dado o ultimato: se houvesse mais algum episódio, Daniel seria submetido a uma proctocolectomia total, cirurgia para a retirada do intestino grosso, e a implementação de uma bolsa de ileostomia. O médico havia explicado que faria um procedimento que geraria uma abertura (estoma), ligando o íleo, localizado no intestino delgado, e a superfície do abdômen, para a eliminação de fezes. 

No mesmo dia, colocaram uma sonda de nutrição parenteral em um acesso sanguíneo do pescoço de Daniel. O objetivo era fortalecê-lo para a operação. Em um mês, ele havia emagrecido 20 quilos. Em 18 de dezembro, Schlabendorff realizou a cirurgia que durou aproximadamente cinco horas. Em média, o intestino grosso de um adulto possui um metro e meio de comprimento, sendo dividido em cólon ascendente, transverso, descendente, sigmóide e reto. Toda a extensão do órgão de Daniel foi retirada, exceto 15 centímetros finais do reto. O objetivo era preservar essa parte para realizar uma religação futura entre o intestino delgado e o reto e retirar a incômoda bolsa de ileostomia.

Quatro dias depois, porém, ocorreu a obstrução do estoma, impossibilitando a passagem e a saída de alimento e fezes. Daniel começou a vomitar e teve de usar uma sonda nasogástrica, aquelas que passam pelas narinas. "Saía um líquido preto do meu estômago, que ia enchendo um frasco”, conta. Em 26 de dezembro, ele foi submetido a uma nova cirurgia - foram cerca de quatro horas até conseguirem desobstruir o estoma. A operação foi bem sucedida, mas o empresário teve outras complicações.

De volta à UTI, Daniel enfrentou episódios intensos de sangramento anal. A situação era tão crítica e delicada que os médicos foram obrigados a encaminhá-lo, mais uma vez, para o centro cirúrgico no dia 30 de dezembro. Na operação de cinco horas foi retirada a parte final do intestino grosso. Dos 15 centímetros, sobraram apenas dois. Pela terceira vez, em um intervalo curtíssimo de tempo - 12 dias - os médicos realizaram o corte vertical em seu abdômen. “Eu estava destruído”. No dia seguinte, foi realizada uma cauterização para evitar novos sangramentos.

A retocolite ulcerativa motivou as cirurgias e quase ocasionou a morte de Daniel. A patologia é classificada como uma doença inflamatória intestinal (DII), autoimune e crônica, ou seja, não há cura, apenas tratamento.  A doença faz com que o sistema imunológico do organismo provoque inflamações na camada mais superficial do intestino grosso de forma contínua. Além de atingir o sistema digestivo, pacientes com retocolite também podem apresentar manifestações extra-intestinais dermatológicas, oftalmológicas, urológicas, hepáticas, pulmonares e vasculares. Pessoas com a patologia possuem risco mais elevado de desenvolvimento do câncer de cólon. A doença é dividida entre fase ativa, quando há o surgimento e a progressão de sintomas, e fase de remissão, quando o paciente não apresenta sintomatologia. 

Após passar dois meses entre internações e altas, ser submetido a três cirurgias e dores fortíssimas, receber mais de 10 bolsas de sangue, utilizar sondas nasogástricas e parentais, chorar em desespero, clamar a Deus e aos médicos mais uma chance de viver, Daniel recebeu alta hospitalar no dia oito de janeiro de 2021. O alívio de estar finalmente em casa, ao lado da esposa e dos filhos, Miguel de 10 anos e Ellen de 4, foi indescritível. 

Doze dias mais tarde, ele teve de retornar ao hospital para retirar os pontos da intervenção cirúrgica. Algumas horas depois, sentiu-se mal e vomitou diversas vezes. Às pressas, foi encaminhado novamente para a UTI. O empresário apresentava um quadro de coleção intra-abdominal, ou seja, havia acúmulo de pus e de material infectado no abdômen. Foram sete dias na unidade e mais três no quarto. “Sai de lá com depressão, tomo remédio e faço tratamento [com psicólogo e psiquiatra] até hoje”.

Durante todo o processo, Daniel contou com o apoio incondicional de sua esposa, Schennia. Com a implementação da ileostomia não foi diferente. O casal enfrentou um período de adaptação para cuidar e realizar a troca da bolsa, descobrir qual seria o modelo adequado para evitar vazamentos. “Eu aprendi com vídeos da internet, principalmente no canal do Youtube da Thainná Batista, que também é ostomizada”, relembra Schennia. Atualmente, o casal também recebe apoio do Programa de Ostomizados, promovido pela prefeitura de Jaraguá do Sul.

Em setembro de 2021, Daniel se submeteu novamente à cirurgia intestinal na tentativa de fazer a religação dos órgãos e retirar a bolsa. “Eu fui mas com o pensamento que se der deu, se não der não deu, paciência”. Infelizmente, o dano provocado pela retocolite foi muito intenso e a cirurgia não foi bem sucedida. Desde então, Daniel é ostomizado permanente e, portanto, uma pessoa com deficiência, tendo os direitos resguardados por estatuto específico.

Com tantas intervenções médicas, os custos do tratamento foram elevados. Por possuir plano de saúde, a quantia  diretamente paga pela família foi reduzida. As internações hospitalares e cirurgias custaram R$ 195.000,00 e foram cobertas pelo plano. Porém houve necessidade de intervenção judicial para solicitação de um dos medicamentos imunobiológicos, que não é fornecido pelo SUS. Mesmo após dois anos, o processo ainda não foi finalizado. O trâmite pode gerar custos processuais de R$ 12.000,00. A família recorreu judicialmente e aguarda decisão.

Em despesas extras, dentre elas diferença de acomodação, visitas médicas, medicamentos imunobiológicos e uma segunda equipe para a cirurgia de reconstrução do trânsito intestinal, a família precisou investir cerca de R$ 65.400,00 e se endividou. Daniel ainda mantém gastos mensais com o plano de saúde, consultas com psiquiatra -  R$ 400,00  - e medicamentos - mais R$ 200,00. Recentemente, o empresário realizou exames de ressonância magnética ao custo de R$ 1.500,00.

O diagnóstico da doença inflamatória intestinal foi recebido por Daniel em outubro de 2020, três meses antes da primeira cirurgia, após uma colonoscopia.  Os principais sintomas eram cólicas e dores abdominais intensas, além de sangramentos. A princípio, sentiu-se aliviado com a identificação da doença pois estava com medo de ser câncer. “Ninguém tinha nem ideia de que retocolite existia e como isso é perigoso”, recorda Schennia. O médico tentou, durante um mês, melhorar o quadro clínico de Daniel com tratamentos, que incluíam medicações caríssimas, ao custo médio de cinco mil reais por ampola. Cada vez mais debilitado, emagrecendo e ainda com dores, ele decidiu procurar outro profissional. 

Em novembro, o segundo médico encaminhou Daniel para internação no Hospital São José. Foram vários episódios de desmaios, dores extremas, sangramentos intensos. No intervalo de um mês, ele recebeu alta e foi internado três vezes. No período, foi realizada uma segunda colonoscopia que apontava a piora na inflamação e o aumento das lesões. “Ele me ligava por chamada de vídeo desesperado, porque não via melhora”, relembra a esposa. Desapontados e insatisfeitos com a conduta do médico, resolveram procurar um terceiro profissional. 

A consulta com o gastroenterologista especialista em DII, Juliano Ludvig, foi marcada no começo de dezembro, em Blumenau.  O médico foi categórico: o caso era cirúrgico e seria necessário implementar a ileostomia. Ao receber a notícia, “parecia que o mundo tinha acabado para Daniel”, recorda Schennia. De volta a Jaraguá, o casal encontrou Alexandre Schlabendorff e sua equipe, que foram responsáveis pelas operações. Ao mesmo tempo, Ludvig atuou como consultor clínico. Quando estava no hospital, Daniel pedia para fazer a cirurgia o quanto antes. “Eu pensava, eu pedia a Deus: eu quero só viver! Se eu tiver que viver com a bolsa, vamos”. 

Emocionalmente abalada, a família se agarrou à fé. “Eu sempre digo que foi Deus mesmo, nossas orações. Do jeito que ele estava, quase partiu”, emociona-se  Schennia. A mãe de Daniel, Irma, também rezou muito para que o filho melhorasse. Por conta da pandemia de Covid-19 e da situação delicada de saúde do empresário, mãe e filho encontraram-se poucas vezes antes da aposentada de 71 anos morrer em decorrência do coronavírus. Em um dos últimos momentos juntos, Irma, curiosa, pediu para ver a bolsa de ileostomia. Após o falecimento, a família Floriano encontrou diversas cartinhas de Irma pedindo a Deus pela saúde do filho. 

Em março de 2021, depois de estar recuperado, Daniel e sua família viajaram até a clínica de Ludvig, em Blumenau, para consultar e agradecer. “Daniel, você é uma fênix!”, disse o médico, comparando o paciente ao ser mitológico que renasce das próprias cinzas.

Manha

2004, Biguaçu, Santa Catarina. Depois de ir ao banheiro fazer cocô e ver o vaso sanitário repleto de sangue, Arthur Furtado, de 10 anos, desesperado, chamou  por sua mãe. Marli levou o filho até uma clínica particular, na cidade vizinha, São José. O pediatra que os atendeu, depois de ver o resultado de alguns exames de sangue, foi categórico no diagnóstico: “é manha de criança”. Em parte, essa conclusão foi motivada por uma característica um tanto quanto peculiar. Arthur se sentia mal às quintas-feiras, quando  tinha aula de teatro e de educação física. “Nos dias em que eu ficava hiper mega nervoso, acabava sentindo dor e ia para casa. Ficava me contorcendo muito na cama, não tinha remédio que passasse”. Mesmo com dores abdominais, cólicas, constipação e sangramentos, o médico mandou a criança de volta para casa. 

Após um período relativamente estável, aos 13 anos Arthur notou um caroço em sua nádega, que começou a aumentar de tamanho e provocar muita dor. Ele foi atendido no Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis. O caroço era, na verdade, uma fístula, uma comunicação anormal entre o intestino e a pele, provocada por uma inflamação no órgão do sistema digestivo. A fístula é utilizada como um caminho para o corpo expelir pus, secreções e sangue. Apesar da gravidade dessa manifestação, o médico que atendeu o adolescente não investigou a fundo o que estava provocando tal sintoma e um procedimento cirúrgico, chamado fistulectomia, foi marcado para realizar o fechamento da comunicação anormal.

Enquanto aguardava a cirurgia, Arthur estava no primeiro ano do ensino médio. Ele convivia com dores, por ficar horas sentado, e com o medo de que, apesar dos curativos, as secreções da fístula vazassem em sua calça e fossem percebidas pelos colegas. Nas aulas de educação física o temor aumentava de acordo com a intensidade do exercício realizado. “Foi um processo bem traumático, horrível, constrangedor, eu sentia muita vergonha”. Na época, alguns episódios de diarreia também acompanharam Arthur, mas nem ele e nem os médicos fizeram qualquer tipo de relação entre os sintomas. 

Após quase dois anos de espera, a cirurgia finalmente foi realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As três primeiras semanas de recuperação foram terríveis. Ele não podia sentar e nem fazer nenhum tipo de força. Ao ir ao banheiro, sentia a ferida rasgar por dentro. Como consequência, a região ficou com uma grande cicatriz. “A marca me incomoda muito até hoje, é um dos meus grandes sofrimentos da vida”. Com o passar do tempo, o jovem foi melhorando. Um ano depois, os episódios de diarreia voltaram e o caroço ressurgiu no mesmo lugar, sinalizando o retorno da fístula. 

Aflito, Arthur buscou auxílio no posto de saúde do bairro em que morava. O clínico geral que o atendeu solicitou uma colonoscopia e encaminhou o jovem para atendimento com o gastroenterologista Luciano Saporitti, no Hospital Celso Ramos, em Florianópolis. Enquanto aguardava o agendamento da consulta, o adolescente teve uma crise severa, ficou internado e recebeu alta na sequência. Aos 16 anos, Arthur foi diagnosticado com doença de Crohn. Na ocasião, Saporitti encaminhou o jovem direto para internação hospitalar com o objetivo de começar o tratamento o quanto antes. Essa patologia é classificada como doença inflamatória intestinal (DII). Ela provoca inflamações no sistema digestivo, podendo atingir diversas camadas de todos os órgãos do aparelho (da boca até o ânus) de maneira não-contínua, ou seja, pode haver trechos de órgãos saudáveis e trechos doentes. A patologia também pode ter manifestações extra-intestinais, dermatológicas, oftalmológicas, urológicas, hepáticas, pulmonares e vasculares. A doença de Crohn é autoimune, de origem desconhecida e não possui cura, apenas tratamento. A condição também é dividida entre fase ativa e fase de remissão e, assim como na retocolite ulcerativa, eleva os riscos de desenvolvimento de câncer de cólon.

Arthur começou o tratamento com corticoides e imunossupressores. Depois foi necessário fazer infusões imunobiológicas. Esse tipo de medicação age no sistema imunológico (de defesa) do paciente, com o objetivo de bloquear a resposta imune, que provoca as inflamações, e interferir na progressão natural da doença. Cada ampola do medicamento utilizado custa cerca de cinco mil reais. Esta é uma das sete medicações de custo elevado fornecidos para pessoas com Crohn e retocolite ulcerativa de forma gratuita, através do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF/SUS). Entretanto, para conseguir a medicação, é necessário passar por um processo burocrático que pode levar meses para ser concluído. 

Com a progressão do tratamento e das infusões, a fístula fechou, dessa vez, sem a necessidade de cirurgia. Arthur seguiu com o mesmo  tratamento por quase seis anos. Caso não recebesse a medicação gratuitamente pelo SUS, nesse período, o jovem teria que desembolsar aproximadamente R$ 900 mil. Como o medicamento é fornecido pelo governo estadual, as entregas estão sujeitas a atrasos. Em uma ocasião, Arthur fez a infusão um mês mais tarde do que deveria. Como consequência, entrou em crise, com episódios intensos de diarreia e, novamente, a fístula deu sinais de retorno. 

Por conta do agravamento do caso, Saporitti fez o encaminhamento para trocar o medicamento imunobiológico de Arthur. Durante dois anos, ele recebeu a medicação - que custaria R$ 110 mil -  gratuitamente. O jovem ficou bem da doença de Crohn, porém seu sistema de defesa ficou muito debilitado e ele foi contaminado pelo vírus H1N1 (influenza) e pelo citomegalovírus (herpes). Para combater a infecção, passou mais 28 dias internado fazendo tratamento que incluía medicações quimioterápicas. 

Depois de receber alta, ele seguiu na busca por um tratamento adequado. Pela terceira vez, Arthur passou a usar um novo imunobiológico. Foi necessário entrar com um processo judicial, por meio da Defensoria Pública, pois uma caixa de 90mg do medicamento custa cerca de R$ 30 mil. Meses depois, a doença regrediu e hoje em dia ele utiliza apenas comprimidos de imunossupressores e este terceiro, imunobiológico. Por ano, o arquiteto gastaria um total de R$ 184.440,00 caso não recebesse os remédios gratuitamente. Apesar de não estar em remissão declarada, Arthur está bem, com o Crohn estável. Há dois anos não apresenta crises e atribui essa estabilidade também aos cuidados com a alimentação, principalmente por ter se tornado vegetariano.

“É muito difícil a gente pensar que isso vai ser para sempre. Será que eu vou conseguir ter uma vida boa? Mas, cara, a gente consegue sim”

- Arthur Furtado

Descobrir o diagnóstico da DII exigiu amadurecimento e aceitação. “É muito difícil a gente pensar que isso vai ser para sempre. Será que eu vou conseguir ter uma vida boa? Mas, cara, a gente consegue sim”. Em 2019, ao chegar no último semestre do curso de arquitetura da UFSC, Arthur não teve dúvidas: como trabalho de conclusão de curso, faria o projeto de um hospital público integrativo e multidisciplinar para DII. “Fui motivado por todas as minhas experiências, por todas as vezes que fiquei internado, inclusive em lugares horríveis!”

O trabalho foi elaborado durante um ano e meio. Arthur entrevistou médicos responsáveis por centros especializados no Brasil, aplicou questionário online para pacientes (sendo obtidas mais de 600 respostas), fez estudos de legislação, terreno, clima, além de visitas técnicas. Os principais conceitos utilizados foram a integratividade e multidisciplinaridade no tratamento de pacientes; desospitalização, cujo intuito é acelerar a alta para que o paciente siga a recuperação em casa; design biofílico para aproximar elementos da natureza do ambiente hospitalar e neuroarquitetura como técnica de composição espacial.

O hospital ficaria localizado em Biguaçu, totalizando 50.782,57 metros quadrados, e teria 457 leitos (UTI, internação e observação) após seis fases de expansão. De acordo com o autor, os resultados do TCC “podem ser utilizados como diretrizes para a elaboração de projetos hospitalares, não somente de hospitais especializados em Doenças Inflamatórias Intestinais (DII), mas para qualquer edifício hospitalar que busque criar melhores relações com o entorno no qual ele será implantado”. Depois de se formar, Arthur foi efetivado no escritório de arquitetura hospitalar IDEIN - Ideia + desenvolvimento arquitetura em Florianópolis. 

“Posso tremer?”

Em setembro de 2013, Natalia também enfrentava as consequências da doença de Crohn. Do lado de fora do centro cirúrgico do Hospital Dona Helena, em Joinville, Letícia Portilio e seu marido, João, esperavam ansiosamente alguma notícia da filha. A caçula da família estava passando por uma cirurgia há mais de quatro horas para a retirada de aproximadamente 40 centímetros de intestino: 20 centímetros do íleo terminal e 20 de intestino grosso. Ela estava sob os cuidados do cirurgião proctologista Harry Kleinubing. A primeira informação recebida pelos pais foi que a adolescente de 17 anos tinha sido encaminhada para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) após uma perda significativa de sangue. O médico responsável pela unidade saiu apressado do centro cirúrgico e abriu a porta grande e branca.

- Quem são os pais da Natalia? Me acompanhem, por favor.

Assustado, o casal seguiu o médico a passos rápidos. Letícia estava completamente desorientada. “Para mim, aquela sala não tinha chão. Eu estava flutuando, eu não via nada, nada. Eu achei que a Natalia tinha falecido”, relembra a mãe. O profissional explicou que, por conta da perda de sangue, era mais seguro para a paciente ficar na UTI, mas que, no geral, a cirurgia havia sido um sucesso. 

Aliviados, os pais foram visitar a filha recém acordada da anestesia. Ela estava deitada na cama do hospital com uma sensação pesada e grogue. Por conta da reação à anestesia e da perda de sangue, estava tremendo muito, dos pés à cabeça. A mãe beijou diversas vezes a filha. 

- Mãe, eu posso tremer?

- Pode, filha. Não vai acontecer nada com a sua cirurgia. 

Mais tarde, ao recobrar os sentidos, Natalia se sentiu aliviada ao perceber que sua operação foi realizada por videolaparoscopia, e não da forma tradicional, que resultaria em uma grande cicatriz vertical em seu abdômen. Ela apresentava apenas pequenos cortes na barriga. No decorrer da cirurgia, talvez fosse necessário a implementação de uma bolsa de colostomia ou ileostomia. Essa possibilidade também não se concretizou.

A busca por um diagnóstico havia começado no ano anterior, em 2012. O primeiro sintoma foi a perda de peso. A princípio, Natalia buscou auxílio de uma profissional da nutrição. “Mas a nutricionista não se interessou muito pelo o que estava acontecendo, ficou por isso”, relembra. Depois, vieram as dores abdominais e o sangramento nas fezes. 

Com a progressão dos sintomas, ela buscou uma médica proctologista. A profissional solicitou uma colonoscopia. Resultado: quadro sugestivo para doença de Crohn. Por conta de mudanças no plano de saúde, o exame teve de ser apresentado a outro médico. Na consulta, ele confirmou que Natalia possuía a patologia, mas garantiu que o caso da jovem não deveria ser tratado. 

Preocupada, a família decidiu buscar uma segunda opinião. A experiência foi péssima e a insensibilidade do gastroenterologista, marcante. Ele explicou a necessidade de tratamento e que, em alguns casos, a doença de Crohn pode se tornar um câncer e até mesmo provocar a morte. “Foi batendo um desespero”, recorda Letícia. Ao saírem do consultório, mãe e filha se abraçaram e choraram no carro. “O primeiro médico diz que não se trata e o outro  fala de uma gravidade tão grande, de uma forma tão assustadora! Estávamos perdidas, sem saber o que fazer”, relembra a mãe.

Depois das duas experiências desagradáveis, Letícia encontrou Harry Kleinubing. “Mas, mãe escaldada, sabe como é”. Na primeira consulta levou apenas os exames e deixou a filha em casa. “Ele me explicou com calma, falou tudo sobre DII e eu senti confiança nele”. Como os exames apontavam que a doença de Crohn estava grave, o médico  solicitou que Natalia fosse à clínica no dia seguinte.

A consulta durou uma hora e quarenta minutos e Kleinubing  insistiu para que a garota saísse da clínica direto para internação hospitalar. Natalia apresentava estenoses no intestino. Nesse tipo de quadro, em uma tentativa de cicatrizar os trechos do órgão inflamados pela doença, o organismo realiza o depósito de colágeno no local e ocorre uma fibrose. Como consequência, aquele trecho sofre um estreitamento e uma retração, o que dificulta a passagem de alimento.

A princípio, Kleinubing tentou realizar um tratamento com imunobiológicos. Por questões burocráticas e pelo custo elevado, a aquisição desse tipo de medicamento pode levar meses para ser concluída pelo SUS. Para acelerar o processo, a garota foi internada por 15 dias. Apesar dos esforços, meses se passaram sem Natalia apresentar melhora. Eram de três a quatro visitas à emergência do hospital por semana. A jovem não conseguia se alimentar, tinha crises de vômito e dor, algumas vezes, não conseguia sequer levantar-se da cama. 

Antes de descobrir a doença, Natalia era voluntária de um projeto chamado Palhaçoterapia. Estudantes de Psicologia Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE) se vestiam de palhaços para alegrar as crianças internadas no Hospital Infantil Dr. Jeser Amarante Faria. Depois do diagnóstico, não pode mais participar do projeto. “Ela que era palhacinha agora estava precisando receber visitas da Palhaçoterapia. Nossa, aquilo para mim doía demais”, recorda a mãe.

"Eu me sentia como se estivesse no final de um labirinto, sem saída. Nesse momento surgiu aquela frase: se der medo vai com medo do mesmo."

- Natalia Portilio

Como a situação estava cada vez mais crítica, a melhor opção era fazer a cirurgia para retirada dos trechos comprometidos do intestino o quanto antes.  Natalia ficou com bastante medo. “Eu me sentia como se estivesse no final de um labirinto, sem saída. Nesse momento surgiu aquela frase: se der medo vai com medo do mesmo. Eu não tinha outra opção”. Durante todo o percurso envolvendo o diagnóstico, a cirurgia e o tratamento, ela pode contar com o privilégio de possuir plano de saúde e uma rede de apoio psicológico, formada por amigos e familiares. 

Durante a recuperação da cirurgia, Letícia exigiu a presença de uma nutricionista para acompanhar a filha. Depois do intestino voltar a funcionar normalmente, a jovem recebeu alta hospitalar. A melhora foi progressiva e as infusões de imunobiológico não foram mais necessárias -  ela seguiu o tratamento apenas com uma medicação imunossupressora. Com acompanhamento médico e exames frequentes, o estado de remissão da doença de Crohn foi declarado em 2017. Natalia tem uma vida praticamente normal, sem restrições alimentares motivadas pela doença. Por se tratar de uma patologia crônica, ela segue monitorando o quadro clínico e tomando a medicação recomendada. 

Entre os anos de 2012 e 2013, período intenso que compreende as consultas médicas, exames, o diagnóstico, internações e a cirurgia, a família de Natalia gastou cerca de R$ 15 mil, somando a mensalidade de um plano de saúde e gastos extras como coparticipações em exames e honorários médicos. Atualmente esse valor corrigido pela inflação através do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) corresponde a R$ 26.965,00. Na época, assim como Arthur, Natalia conseguiu a medicação imunobiológica gratuitamente por meio do CEAF/SUS. Caso contrário, a família teria de desembolsar R$ 17.765 (valor também corrigido pela inflação atual). Hoje em dia, ela ainda recebe gratuitamente pelo SUS uma medicação imunossupressora. Caso contrário, teria de gastar aproximadamente R$ 300 por mês. 

Com o estado de remissão declarado, o custo do tratamento de Natalia, hoje, é de aproximadamente R$ 800 por mês, investidos no plano de saúde, que cobre as  consultas e exames periódicos, e sessões de terapia. Nas DII, o estado psicológico do paciente interfere diretamente nos sintomas. Um desequilíbrio ou um gatilho emocional pode retirar uma pessoa do estado de remissão e colocá-la em crise ou retardar a melhora, apesar da utilização de medicamentos convencionais. Natalia faz acompanhamento psicológico há anos e atribui sua conquista de remissão também à realização de terapia. Apesar de vivenciar a melhor opção possível de quadro clínico, ela sofre com inseguranças. “Sempre fica essa dúvida: será que a doença vai voltar? Quanto tempo será que vai durar essa remissão? A gente fica na mão da doença”. 

Em Santa Catarina a prevalência de casos de DII é de 148 a cada 100 mil habitantes

Fonte: artigo Tendências temporais na epidemiologia da doença inflamatória intestinal no sistema público de saúde do Brasil

Associação 

Além de possuírem DII, os personagens desta reportagem compartilham vivências semelhantes como a dificuldade para obtenção do diagnóstico, negligência médica, demora na definição do tratamento adequado e intervenções cirúrgicas. Porém, é importante salientar que não são todos os casos de DII que evoluem para quadros graves. A depender de quando o diagnóstico é realizado, da atenção médica recebida, da resposta ao tratamento medicamentoso (e possivelmente nutricional e psicológico) o quadro de saúde do paciente pode estabilizar e ele se pode recuperar-se com relativa rapidez. Este é o meu caso. Fui diagnosticada com retocolite ulcerativa em abril de 2021, após oito meses de sintomas leves. Entre obter o resultado da colonoscopia e começar o tratamento, passaram-se aproximadamente dois meses. Minha lesão é moderada e está restrita a porção final do intestino grosso, no reto. Faço tratamento contínuo com anti-inflamatórios recebidos gratuitamente pela Farmácia de Alto Custo de Florianópolis. Desde então estou estável e, na medida do possível, bem.

Daniel, Natalia e Arthur fazem parte da estatística de prevalência (casos totais) de doença inflamatória intestinal registrados em Santa Catarina estimada em 148 a cada 100 mil habitantes, segundo o artigo “Tendências temporais na epidemiologia da doença inflamatória intestinal no sistema público de saúde do Brasil: um amplo estudo populacional”, do médico e pesquisador Abel Botelho (UNOESC). Na pesquisa são apresentados dados de incidência e prevalência estimada da doença de Crohn e da retocolite ulcerativa em todos os estados do país utilizando dados de saúde pública. O estudo abrange de janeiro de 2012 a dezembro de 2020. No estado catarinense a incidência (número de casos novos por ano) estimada de DII foi de 13 a cada 100 mil habitantes, ou seja, 942 novos casos a cada ano. 

Com o objetivo de prestar auxílio aos catarinense com DII, foi fundada, em 2016, a Associação de Pessoas com Doenças Inflamatórias Intestinais de Santa Catarina (DIISC). A formação da organização está intimamente ligada à trajetória profissional de Kleinubing - médico responsável pelo tratamento de Natalia. Em 1998, doze anos após se formar em medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o cirurgião proctologista começou o mestrado em Clínica Cirúrgica junto à Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nos anos 2000, cursou doutorado na mesma área e instituição. Foram cinco anos intensos de estudos conciliados com trabalho. O médico viajava frequentemente para fazer as aulas: saia de Joinville às quatro horas da tarde, percorria 131 quilômetros, ia até a universidade em Curitiba, comparecia às aulas e retornava para Santa Catarina de madrugada. “Foi pesado, mas valeu muito a pena porque, com isso, eu fiz um currículo invejável. Meus trabalhos de conclusão foram publicados no exterior em revistas internacionais de primeira linha na minha área”.

A partir das conquistas acadêmicas,  Kleinubing foi admitido como professor titular do departamento de medicina na UNIVILLE, em Joinville.  Na universidade, o professor criou, em 2008, um projeto de extensão chamado Ascolite, que promovia reuniões semanais à noite, a princípio no Hospital Regional e, posteriormente, no anfiteatro do Hospital Dona Helena. Nos encontros voltados para pacientes com DII e seus familiares, os alunos de Medicina explicavam o que são as doenças, o que é uma colonoscopia,  falavam sobre as medicações e as cirurgias, e, também, tiravam dúvidas. 

Como Natalia era paciente de Kleinubing, sua mãe, Letícia, passou a frequentar as reuniões. Surgiu, então, a ideia de criar uma associação estadual de pacientes com DII, com o objetivo de divulgar o tema para a sociedade, conquistar leis e direitos para os pacientes, auxiliar na indicação de profissionais especialistas e competentes, intermediar a doação de medicamentos, ou seja, ajudar a população catarinense com DII no que fosse possível.

A Associação de Pessoas com Doenças Inflamatórias Intestinais de Santa Catarina foi fundada em 15 de julho de 2016. A organização é uma entidade civil de caráter social, apartidária, não governamental, sem fins lucrativos, constituída por voluntários. Possui 388 associados, sendo 223 com doença de Crohn e 165 com retocolite ulcerativa.  No dia 15 de maio de 2016, ainda antes de sua fundação oficial, a futura associação promoveu a primeira caminhada “Maio Roxo”, em Joinville. No Brasil, este é o mês dedicado à conscientização da população sobre a existência das DII. Na ocasião, cerca de 100 pessoas percorreram a Avenida Beira-Rio - uma das principais da cidade - vestidas com camisetas roxas, onde se lia a frase “juntos na luta contra a DII”, levando uma faixa e balões. Três anos depois, a DIISC organizou o maior evento presencial de divulgação da causa: mais de mil pessoas se inscreveram como participantes da corrida do Maio Roxo, realizada também em Joinville. 

Em 2018, Letícia Portilio, a mãe da Natália, assumiu a presidência da organização. No mesmo ano, Kleinubing se afastou das atividades docentes e a DIISC passou a promover reuniões tanto com os familiares e pacientes com DII quanto com acadêmicos da área de saúde - estudantes de medicina, nutrição e enfermagem. O intuito era auxiliar na formação de profissionais mais atentos e sensíveis às questões relacionadas as DII, a exemplo do que acontecia no Ascolite, liderado por Kleinubing.

Desde o início da pandemia de Covid-19, os encontros foram suspensos por questões de segurança sanitária e as ações de divulgação ficaram mais restritas ao ambiente virtual, com lives no Instagram e Facebook.  Ainda assim, em 2020, a associação conseguiu que 12 pontos como prefeituras, câmaras de vereadores e batalhões de seis cidades catarinenses - Florianópolis, São José, Joinville, Joaçaba, Porto União e Concórdia -  ganhassem iluminação roxa em maio.

Durante seis anos de atuação, a DIISC articulou a aprovação de três leis municipais nas cidades de Balneário Camboriú, Blumenau e Joinville; uma lei estadual; e também auxiliou na criação de uma lei municipal em São José. Todas as legislações estão relacionadas à divulgação da causa, especialmente no mês de maio. A articulação com políticos se faz necessária para garantir direitos para pessoas com DII, mas os processos não são fáceis. Em 2019, Maurício Peixer (PL), vereador de Joinville, propôs o projeto originário da lei 8.690, que instituiu a Semana de Conscientização sobre as Doenças Inflamatórias Intestinais. Durante a campanha eleitoral de 2020, o então candidato a vereador de Joinville pelo Partido Novo, Ricardo Mafra, atacou o também candidato Maurício Peixer se referindo à legislação como “lei de caganeira”. 

O post nas redes sociais de Mafra recebeu diversos comentários apoiando a agressão. A diretoria da DIISC entrou em contato com associações de pacientes, com a DII Brasil, e com profissionais da área da saúde, incluindo Kleinubing. Unidos, organizações e pessoas físicas se manifestaram contra a afirmação do candidato, redigindo dezenas de comentários. A associação catarinense também emitiu uma nota de repúdio esclarecendo a relevância da legislação que respalda o trabalho realizado em prol dos pacientes e a DII Brasil emitiu um comunicado informando que seriam realizadas reuniões para debater o ocorrido. A DII Brasil também fez uma transmissão online, em suas redes sociais, reiterando a importância das legislações específicas sobre a temática. Para evitar a promoção do candidato, seu nome e sua postagem não foram citadas em momento algum.

Por conta da pressão pública, Ricardo Mafra tentou justificar sua fala e deletou a publicação. Peixer foi reeleito vereador e, atualmente, é o presidente da Câmara. Ricardo Mafra perdeu as eleições, mas foi nomeado pelo prefeito Adriano Silva, também do Partido Novo, Secretário de Administração e Planejamento da cidade.

“A gente luta para que seja igualitário, para que todos tenham os mesmos direitos à saúde, ao tratamento, conhecimento da doença e que não sofram discriminação"

- Letícia Portilio

Linha de Cuidado

Com o objetivo de tornar mais ágil o atendimento aos pacientes, a DIISC articulou o desenvolvimento de uma linha de cuidado para o Sistema Único de Saúde (SUS) de Joinville. A linha de cuidado desenvolvida foi fruto de diversas reuniões. O documento foi elaborado por 12 profissionais da saúde municipal, dentre enfermeiros, médicos especialistas, coordenadores de centros especializados e da central de regulação, farmacêuticos, nutricionistas, coordenadores do laboratório municipal e da central de ostomizados. A proposta foi submetida a consulta pública através do Núcleo de Apoio à Rede de Atenção à Saúde (NARAS) de Joinville. A aprovação ocorreu ainda em 2019. Vanessa Cardoso, gerente de Enfermagem e do Núcleo de Gestão Assistencial da secretaria de saúde de Joinville, explica que no mesmo ano o documento passou pelo processo de publicização, foi incorporado no sistema interno e encaminhado para todas as bases e unidades. Como trata-se de uma reorganização do sistema de atendimento existente e não houve a contratação de novos profissionais, a linha de cuidado não possui custos ou impactos financeiros para a administração pública da cidade. Um dos principais objetivos é a descentralização dos atendimentos de pacientes com DII do ambulatório especializado do Hospital Municipal São José.

Em 2006, o ambulatório foi fundado por Kleinubing. Durante as tratativas para a fundação, o médico demonstrou para a chefia da instituição que pacientes graves com DII não conseguiam consultas em tempo adequado por falta de agenda, embora necessitassem de acompanhamento constante para avaliar se o tratamento estava funcionando, trazer exames, renovar as receitas, além de atendimento prioritário em casos de urgência. Precisavam de um centro especializado, onde pudessem receber o diagnóstico, tratamento clínico e realizar cirurgias. De acordo com o médico, sem essa estrutura os pacientes eram atendidos nas emergências devido às complicações, em péssimas condições clínicas e submetidos a cirurgias que poderiam ser evitadas com tratamentos de manutenção.

A princípio, apenas um dia da semana era destinado para pacientes com DII ou com suspeita das doenças. A demanda cresceu de maneira expressiva e, com o passar dos meses, o cirurgião proctologista começou a atender exclusivamente casos de retocolite ulcerativa e de Crohn. Até se aposentar do hospital, em 2018, o médico atendeu cerca de 400 pessoas. “Os pacientes com DII eram encaminhados da região norte [de Santa Catarina] inteira para o ambulatório porque não tinha ninguém para tratá-los”, relembra o médico. 

Ao longo de sua trajetória profissional de 24 anos, Kleinubing presenciou a morte de cerca de 10 pacientes com DII. “Na maioria dos casos, por deficiência do sistema. Pacientes sem diagnóstico que internaram com doença muito avançada, demora para conseguir consultar ou internar, falta de equipe multidisciplinar, pacientes que interrompem o tratamento por conta própria, efeitos colaterais dos medicamentos e falta dos medicamentos na rede pública”, explica o proctologista.

Dados do INOVA, projeto que pertence à gerência de gestão estratégica da secretaria de saúde de Joinville, indicam que 233 pessoas com DII foram atendidas no ambulatório em 2021, sendo 156 com doença de Crohn e 77 com retocolite ulcerativa. Ambas patologias precisam de acompanhamento médico constante, realização de exames e tratamento contínuo. Essas características, somadas ao volume de pacientes e a existência de um único ambulatório público especializado, resultam em lentidão no atendimento, o que pode agravar os casos. O ambulatório é composto por uma equipe multidisciplinar coordenada pela gastroenterologista Patrícia Fertig Kirsten.

 De acordo com a linha de cuidado proposta, ao receber pacientes com sintomas de DII nas unidades e postos de saúde, o médico faria o encaminhamento para um gastroenterologista, ou proctologista ou, ainda, para um gastroenterologista pediátrico. A central de regulação municipal daria prioridade para agendar a consulta com o especialista e para a realização de exames. Segundo a estimativa do IBGE a maior cidade catarinense, Joinville, possui 600 mil habitantes. Em fevereiro de 2022, havia 1604 pessoas na fila para realização de colonoscopia hospitalar, com tempo médio de espera de um ano e meio, e outras 207 pessoas na fila de colonoscopia ambulatorial, com espera aproximada de quatro meses.

 A linha de cuidado propunha, em caso de confirmação do diagnóstico, que o paciente fosse encaminhado para uma consulta com nutricionista da rede de atenção primária à saúde e continuasse fazendo acompanhamento clínico com o gastro ou proctologista. Dessa forma, apenas os casos mais agudos, quando os pacientes estão com a doença em crise, seriam direcionados para os médicos do ambulatório no Hospital São José.

Uma das dificuldades apontadas foi a falta de capacitação de médicos gastroenterologistas e proctologistas do SUS para atender casos de DII. “Nós, enquanto associação, conseguimos o coloproctologista Rodnei Sampietro que se disponibilizou a gravar teleaulas para os gastroenterologistas e proctologistas do SUS ficarem aptos a fazer o tratamento necessário para DII”, explica Letícia. Até março de 2022 a formação ainda não havia sido realizada. Em março de 2020 todas as formações, exceto aquelas voltadas para o enfrentamento da pandemia, foram suspensas. Em 2022, as formações de outras áreas devem ser retomadas pelo Centro de Educação e Inovação em Saúde.

Há um embate entre a DIISC e a secretaria de saúde. Enquanto a presidente da associação considera que a linha não foi implementada, já que não vê pacientes sendo beneficiados na prática, Vanessa Cardoso esclarece que a linha de cuidado é considerada como oficialmente implementada pela secretaria de saúde, já que os processos foram cumpridos e a orientação foi direcionada para as unidades.

Entretanto, a gerente reconhece que em 2020 e em 2021 a emergência em saúde pública provocada pela pandemia de Covid-19 impôs uma nova prioridade: a demanda espontânea de pacientes com sintomas respiratórios. Consequentemente, houve impactos nas determinações da linha de cuidado. Por exemplo, o encaminhamento para aquisição ou renovação de receitas ser direcionado para médicos das unidades de saúde e não exclusivamente para os especialistas, depende da marcação de consultas e agendamentos que foram prejudicados pela pandemia. “Agora que a vacinação contra a Covid foi incorporada, os processos dos atendimentos programáticos, de cuidado continuado, estão sendo retomados ao longo deste ano”, explica. Além disso, de acordo com a gerente, a lentidão na execução dos processos estabelecidos pela linha de cuidado estão relacionados às fragilidades da saúde pública. “Não é algo específico, e, sim, geral”. Neste contexto, ela reconhece a importância do envolvimento de organizações como a DIISC para impulsionar iniciativas e propostas.

“A gente luta para que seja igualitário, para que todos tenham os mesmos direitos à saúde, ao tratamento, conhecimento da doença e que não sofram discriminação. Eu quero que todos os pacientes tenham o que a Natalia, minha filha, teve: apoio familiar, psicológico, nutricional, exames, que não fiquem esperando [por falta de agenda no serviço público]”, desabafa Letícia. 

No Brasil, entre janeiro de 2012 e dezembro de 2020, foram incluídos no sistema de saúde pública nacional 212.026 pacientes com DII, sendo 140.705 com retocolite ulcerativa e 92.326 com doença de Crohn. O pesquisador Abel Quaresma demonstrou que os dados de prevalência estimada, que medem a proporção de indivíduos acometidos pelas doenças no período, indicam um aumento significativo nas taxas de DII na população brasileira -  de 2012 a 2020 esse número saltou de 30,01 para 100,13 a cada 100.000 habitantes. As demandas por profissionais e centros especializados, tratamentos e políticas públicas são, portanto, crescentes. A atenção do poder público e a sensibilidade da sociedade também deveriam ser.